Em decisão unânime, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), durante o julgamento do REsp nº. 2.091.441 e 2110361, firmou o entendimento de que os créditos oriundos de atos cooperativos firmados entre cooperado e cooperativa de crédito não se submetem aos efeitos da recuperação judicial. A decisão foi fundamentada, principalmente, no disposto no art. 79 da Lei nº. 5.764/1971 (Lei das Cooperativas) e no §13 do art. 6º da Lei nº. 11.101/2005 (Lei de Recuperação Judicial e Falências – LRF), incluído pela reforma promovida pela Lei nº. 14.112/2020.
Para bem compreender o alcance da decisão, é necessário retomar as premissas que regem o regime jurídico do cooperativismo e das cooperativas. De acordo com o art. 5º da Lei das Cooperativas, as cooperativas são sociedades de pessoas com forma e natureza jurídicas próprias, podendo ter por objeto qualquer gênero de serviço, operação ou atividade. No âmbito das cooperativas de crédito, essa peculiaridade se expressa na participação ativa dos associados tanto na gestão quanto na fruição dos serviços ofertados. São, simultaneamente, “donos” e “usuários”.
Na condição de usuários, os associados praticam os chamados atos cooperativos, ou seja, operações realizadas entre cooperado e cooperativa no âmbito da atividade estatutária comum. Os resultados econômicos dessas operações, quando positivos, geram sobras líquidas, as quais são distribuídas entre os próprios cooperados, conforme prevê o art. 4º, inciso VII, da Lei das Cooperativas.
No caso específico das cooperativas de crédito, o ato de reunir pessoas para, em regime de mutualidade, aplicar recursos e prover produtos e serviços financeiros destinados exclusivamente aos próprios associados, sem finalidade lucrativa, constitui o coração do ato cooperativo.
Assim, pouco importa se tais atos são formalizados por instrumentos jurídicos comuns ao mercado, como cédulas de crédito bancário, ou se envolvem condições típicas de mercado, como a aplicação de taxa de juros acima do percentual legal de 1% (e de acordo com a Lei de Usura) e prazos. Também é irrelevante o fato de as cooperativas de crédito integrarem o Sistema Financeiro Nacional. Desde que enquadradas no objeto social da cooperativa e voltadas ao fomento da atividade econômica dos cooperados, permanecem qualificadas como atos cooperativos.
Foi com base nessas premissas que o STJ reconheceu, de forma acertada, que os créditos decorrentes de tais operações devem ser excluídos da recuperação judicial, nos termos do §13 do art. 6º da LREF. A Corte afirmou que a natureza financeira do instrumento não descaracteriza o ato cooperativo, desde que a operação esteja prevista estatutariamente e cumpra sua função de apoio à atividade econômica do associado.
A decisão também se mostra social e juridicamente adequada, pois, diferentemente das instituições financeiras convencionais, as cooperativas de crédito só podem operar por meio da mutualidade, isto é, captam recursos e concedem crédito exclusivamente aos seus associados. Esse regime jurídico permanece inalterado mesmo após a entrada em vigor da LC nº. 196/2022 (legislação federal que trouxe mudanças substanciais à Lei das Cooperativas, sobretudo com a finalidade de ajustar as disposições à sociedade atual).
Ademais, a regulação pelo Sistema Financeiro Nacional não transforma a natureza jurídica da cooperativa, nem descaracteriza seus atos como cooperativos. Tampouco a cobrança de juros compromete a essência da operação, uma vez que os valores cobrados visam manter a sustentabilidade da cooperativa e ampliar a oferta de crédito, o que, em última análise, favorece os próprios cooperados. Aliás, especificamente sobre o tema, pensar sobre a submissão do crédito decorrente de ato cooperativo ao concurso, certamente implicaria em prejuízos aos cooperados.
Com a reforma da LRF, promovida pela Lei nº. 14.112/2020, o legislador consolidou esse entendimento ao inserir no texto legal a exclusão dos atos cooperativos do âmbito da recuperação judicial do cooperado, reforçando o tratamento jurídico diferenciado do setor.
Por fim, destaca-se que a decisão do STJ fortalece a segurança jurídica do sistema cooperativo de crédito. Todavia, demanda maior diligência das instâncias inferiores para, ao identificar créditos oriundos de atos cooperativos, proceder de imediato à sua exclusão do processo de recuperação judicial. Isso evita litígios desnecessários e permite à cooperativa exercer seus direitos creditórios com maior previsibilidade e efetividade.
Texto por Pedro Marcelo